Com alguma certeza afirmo que minha mãe morreu achando que o Messi é autista por uma fake news repassada por mim. Dizem que chumbo trocado não dói e espero que isto me sirva de perdão, já que vim acreditando em uma falácia inventada por ela há muitos anos.
Explico: minha mãe era uma grande entusiasta da teoria de que, ao confrontados com uma pergunta, a primeira resposta que nos viesse à mente tinha uma porcentagem grande de ser verdadeira ou correta. Ela embasava esta convicção em percentuais aleatórios e na premissa de que há informações escondidas dentro de nosso cérebro que só esperam por uma oportunidade para serem ativadas. Ouvi isto por toda minha vida, não me lembro da primeira vez, mas imagino ter sido em uma das inúmeras noites em que ela me acompanhava fazendo lição de casa. Ao errar uma pergunta, devo ter respondido que tinha mesmo pensado de primeira na resposta certa, mas avaliara melhor e outra alternativa passou na frente.
Anos depois, professora, repassei a informação a muitos alunos em situações parecidas àquela minha, mas não sem antes me proteger com o disclaimer de que “minha mãe sempre diz(ia) isto e me parece fazer sentido”. Sempre faz sentido alguma alternativa que justifique nossos erros, mas receio que tenho sido uma grande espalhadora de fake news por aí.
Infelizmente minha mãe morreu antes que eu desvendasse ambos os mistérios, Messi não é autista e a teoria da resposta intuitiva está errada. O primeiro, descobri em uma noite destas sob a galhofa de meu marido, mas o segundo me veio graças à leitura do livro Rápido e devagar: duas formas de pensar, do psicólogo e economista Daniel Kahneman. A grosso modo, o autor divide nossa capacidade de pensar e tomar decisões em dois sistemas, 1 e 2. O sistema 1 é rápido, intuitivo e emocional, enquanto seu irmão é lento, lógico e deliberativo. Mais a grosso modo ainda, o que ele explica é que o sistema 1, por ser mais ágil, é quem é acionado quando temos uma demanda imediata. Acontece que, por ser intuitivo, ele toma decisões baseadas em uma quantidade limitada de evidências (isto seria tarefa para o sistema 2). Por outro lado, este sistema disposto a refletir sob questões mais complexas é um grandessíssimo preguiçoso que, quando confrontado, diante de uma propensão intuitiva de uma resposta do sistema 1, tende a deixar pra ele a resposta a não ser que a considere absurda ou que seja ativamente recrutado a atuar, refletir e deliberar. Ou seja, a primeira resposta que vem à mente é, sim, possível. E é por isso que nos equivocamos.
Exatamente por ser possível, a não ser que voluntariamente evoquemos o sistema 2 a pensar, a primeira opção vai, mesmo, tomar a dianteira. Acontece que nem sempre o possível é a resposta certa: o verbo decir, quando conjugado na terceira pessoa do singular no passado é dijo, mas muitos alunos respondem dije. Isto porque dije é a resposta correta para a primeira pessoa, ou seja, está entre o intervalo de opções possíveis de resposta. A não ser que, em vez de confiar na intuição, a pessoa se detenha um momento e cheque a informação, mesmo que mentalmente, fácilmente o sistema 2 não é completamente acionado, endossando, então, a primeira resposta, que pode ser ou não correta. Mas aí o percentual de possibilidade de acertar não é o aleatório inventado por minha mãe, mas vai variar a depender do tipo de problema apresentado.
O embrolho é que todas estas operações são muito, muito rápidas e na maior parte das vezes não chegam à nossa consciência. E é aí que vem a emboscada.
No fim de semana comecei a ver For all mankind, uma série cuja história ocorre em um cenário no qual a União Soviética ganha a corrida espacial e chega primeiro à Lua. É uma série interessante e que discute muitas coisas, mas, principalmente, é uma série de mulheres astronautas.
E me peguei pensando sobre o fato de nunca ter me passado pela cabeça ser astronauta. Eu teria sido uma boa astronauta, tenho habilidades coerentes com a da profissão de astronauta, teria sido legal ser astronauta, mas eu achava que não podia ser astronauta. Na verdade, se confrontada com a possibilidade de ser astronauta, a Renata de 7 anos diria que não tem astronauta pra ela. Se a pergunta demandasse uma justificativa, a única resposta que me passaria pela cabeça seria: porque não tem/não pode ser astronauta, e teria dificuldade em explicar se quem não tem/não pode era eu ou qualquer mulher. Isto porque algumas das habilidades esperadas para um astronauta, eu sabia, são realizar cálculos complexos, operar manobras difíceis, realizar experimentos científicos e manter as estações espaciais em funcionamento. Bem, hoje, 2023, nós já sabemos que o mito do raciocínio masculino analítico é uma piada cientificamente refutada, mas socialmente criada. Além disso, mulheres dirigem melhor que homens e, quando consideramos a manutenção das estações especiais, bem, há quem fale sobre a economia do cuidado muito melhor que eu, mas estas três palavras já fazem cair por terra a desconfiança de que não seríamos capazes de manter uma estação em funcionamento. Consigo imaginar qualquer amiga relaxando na tarefa de fazer a manutenção de uma estação espacial em vez da realidade terrestre de administrar uma casa com cachorros, filho, marido, trabalho, família, skincare, atividade física, depilação, menstruação, enquanto troca o fusível do chuveiro, só pra citar as primeiras incumbências que me vêm à mente assim de supetão.
Mas eu sou filha dos anos 80, uma época em que, sendo mulher, não ter as coisas era mais normal do que ter, e nosso cardápio de escolhas pro futuro estava muito mais para menu executivo do que a la carte. Acontece que eu podia ter querido ser astronauta, mas não me ocorreu. Porque não me ocorria que eu poderia querer coisas para além das fixadas no letreiro.
Então me peguei pensando quantas vezes fui vítima da minha própria fake news e questionando quais outras coisas eu cheguei aqui achando que não podia. E se algumas decisões que não tomei e escolhas que não fiz foram obra deste tal patriarcado sistema 1 dizendo ao preguiçoso 2 que não podia. Como a oferta de informações fazia com que a teoria dificilmente fosse refutada (quantas mulheres astronauta você conhece?), ele sequer se dava ao trabalho de ir conferir se podia ou não e então não podia mesmo. E, veja, não digo com isso que nos anos 80 não houvesse astronautas mulheres, mas a amostragem é era tão pequena que, diante do mínimo confronto com a possibilidade, mais fácil descartar.
Muitas coisas eu podia, minha mãe terminou a faculdade de psicologia, meu pai andava com uma pasta de couro cara, mas acabava por aí. Eu sabia que deveria estudar e ter uma profissão, mas ao mesmo tempo queria ser caixa de supermercado porque pensava que elas ficavam com todo dinheiro que minha mãe entregava, que podiam comer tudo que tinha lá e, o principal, operavam a caixa registradora com botões. Mesas de comando de astronaves também têm botão, mas eu decidi ser professora porque queria salvar o mundo, como meus professores me salvaram de ser caixa de supermercado. O que eles não me contaram foi que eu podia ser astronauta.
Em 2020, quando decidi que faria uma transição de carreira, mas ainda sem saber para onde ir, lembro de falar muitas vezes da sensação de que tinham me entregado um cardápio em chinês, sem foto, e eu precisava escolher o que comer. Então eu escolhi o prato a muitas duras penas, paguei pelo prato, me disseram que eu precisava cozinhar o prato e a receita estava em um idioma que até agora aquela hora não me era confortável. E ainda assim, quando me sento para comer o prato que escolhi, pelo qual eu paguei e por cujo preparo fui 100% responsável, o que mais ouço são piadas insinuando que fui influenciada por meu marido por ter escolhido o mesmo restaurante que ele. Caixa de supermercado teria sido mais autêntico.
Eu provavelmente não teria sido astronauta se tivesse sabido que podia, infelizmente caixas de supermercado ganham mal, consomem pouco (ou nada) do mercado onde trabalham e a modernidade substituiu os botões da caixa registradora por leitores de código de barras. Tampouco acho que serei advogada. Na verdade, ainda não sei o que vou fazer quando a mesa estiver posta. No momento tenho só o aperitivo das boas notas que tirei no primeiro ano.
Foi mais fácil me convencer de que Messi não é autista do que que eu poderia ter sido astronauta. Isto porque evidências comprovam a ausência do diagnóstico, enquanto eu precisei da ficção para descobrir que fui induzida ao erro de aceitar acreditar que o prato servido era a única opção quando, na verdade, eu podia cozinhar o que quisesse comer. Mas ano que vem faço 40 anos e escolhi deliberadamente não ter filhos, mudar de profissão nesta altura, ousar fazer as pazes com meu corpo, não pintar os cabelos brancos. Acho que estou virando astronauta.