escrever é a pior parte
"There's man all over for you, blaming on his boots the fault of his feet." - Samuel Beckett
Decidir escrever uma newsletter foi difícil. Para piorar, quando decidi, não contava que teria que escrevê-la de fato. Escrever é a pior parte da escrita, fazia tanto tempo que eu já tinha me esquecido.
Acontece que eu sou destas pessimistas que acham que tudo de bonito que poderia ser dito já foi falado. Ao mesmo tempo, tenho andado cansada de pensar que o mundo foi nomeado por gente (homens) muito pouco interessados em como nós gostaríamos que o que circunda nossa existência se chamasse. Tudo que nos cerca foi nomeado sem ter em consideração que nós ocupamos metade deste mundo e que ele depende de nós para ser minimamente funcional (alô, economia do cuidado!). Mais que isso, ando pensando sobre como é tudo tão velho e ultrapassado. Muito do que se disse sobre a vida foi dito há tanto tempo e sob uma mirada totalmente desprovida de qualquer subjetividade que a) contemplasse a nós, mulheres; e b) considerasse a velocidade com que tudo tem, sim, mudado nos últimos tempos. E eu mudo fácil de opinião quando convencida, não tenho lá grandes problemas em ter meus argumentos refutados e escrever, em si, é já imprimir um pensamento. Minha cabeça é como o descarte de um jogo de buraco depois de muitas rodadas em que todos os jogadores compram carta do monte.
Ao mesmo tempo, vejo cada vez mais uma tendência de que as pessoas se permitam individualizar, criar um eu a despeito do que nos moldou, repensar o que foi dito da nossa forma de estar aqui. Por outro lado, estou exausta de tanta individualização e da demanda de criar e encontrar produtos e serviços pensados para sanar nossas necessidades mais individualizadas, aquela que nem a gente sabia que tinha. Tem que haver um limite. E embora eu não faça ideia de qual, na última edição que fiz do meu contrato de prestação de serviços, incluí um termo em que afirmo ter direito de encerrar a aula caso o aluno não esteja no que chamei de “um ambiente adequado”, ilustrando com casos como a pessoa estar dirigindo ou sem roupa. Este talvez seja um limite para a personalização do que posso oferecer. Mas não sem antes ter, sim, dado uma aula em que o aluno estava dirigindo. E passado 1h com medo de ser a responsável por um acidente de trânsito caso ele desviasse a atenção da direção para pensar em uma correção que eu por ventura fizesse. Depois desta aula, de fato pensei que tipo de atividade eu poderia oferecer caso a pessoa esteja dirigindo e confesso uma certa frustração quando decidi que não tenho condições de sanar esta necessidade sem alterar muito a estrutura do meu produto e, consequentemente, afetar significativamente o preço.1 Por outro lado, me peguei pensando no absurdo da demanda em si, será mesmo que as pessoas precisam de aulas planejadas para serem dadas enquanto estão dirigindo? É este um nicho? Uma tendência? Uma necessidade tão específica que eu poderia sanar? Enfim, desisti (desistir é uma delícia) e aceitei minha limitação, impondo-a também àqueles que venham a ser meus clientes/alunos.
Mas no que se refere à criatividade, sou mesmo uma cansada e, para piorar, realmente acho muito difícil fazer coisas novas hoje. Minto, acho difícil que eu faça algo novo hoje. Porque as muitas coisas boas sendo feitas (e elas existem aos montes, vide as recomendações ao final desta newsletter) estão sendo criadas por pessoas tão mais talentosas do que eu. Não faria sentido me atrever a escrever mais um texto só porque estava com vontade.
O ponto é que eu tenho, também, muita dificuldade em reconhecer minhas vontades e oscilo entre o que considero capricho e o “““propósito de vida”””, algo grande e revolucionário, deixando tudo que está no meio disto meio de lado, frustrada por não acreditar que finalmente encontrei algo importante para dizer e covarde demais para decidir fazer uma coisa só por desejo.
Fato é que eu estava com vontade, mas achava que esta vontade não era acessível. Primeiro porque todas as coisas já foram ditas ou estão sendo ditas por pessoas mais talentosas que eu. Segundo porque não fazia qualquer sentido me expor ao risco do ridículo2 quando deveria estar sendo produtiva, e não caprichosa. Ora, ora, sem talento e por capricho, eu sempre soube que sucumbiria a esta vergonha.
Ano passado minha vida virou do avesso, minha mãe morreu, comecei uma segunda graduação, adotei uma cachorra quebrada. Antes disso, antes de ficar órfã, de começar uma transição de carreira e virar mãe de pet maluco, eu tinha imigrado pra Itália com meu marido. Ele foi aprovado para o doutorado, era pandemia e eu estava dando aula (de espanhol) de casa. Era uma boa chance. E foi, e está sendo, mas é mais fácil se apaixonar pela Itália do que se casar com ela. E tudo que se diz é verdade e é mentira, é uma imensa invenção, é hipócrita, é um sabor delicioso e as paisagens mais bonitas. A Itália é tudo isso e nada disso. Imigrar na Itália é o resultado da equação de tudo que ela tem a oferecer menos o imposto que cobra por você não ser um deles.
Mas voltando ao que não tenho a dizer, bem antes disso tudo, fiz um mestrado em literatura falando sobre a maravilhosa Paulina Chiziane e comecei um doutorado sobre Beckett e humor. De lá pra cá, muitas coisas têm me interessado e sobre as quais eu gostaria (por capricho) de falar (sem qualquer autoridade ou talento): moda e mercado plus size, feminismo cansado, migração dos passarinhos no outono, direito e gordofobia, café... E comida. Porque adoro comer e amo cozinhar. Tenho uma relação bem íntima com a comida, que nasceu com minha mãe e não morreu com ela. Penso e falo muito sobre o luto, como já deu para notar.
Eu deveria estar sendo produtiva e começando a próxima disciplina da faculdade. Ou fazendo um conteúdo pro Instagram das minhas aulas. Não brinquei com a cachorra ainda e preciso decidir o que fazer para o jantar. Tudo isso eu deveria estar fazendo, mas decidi criar uma newsletter para falar de coisas que já estão sendo (melhor) ditas por pessoas muito mais talentosas que eu, só porque me deu vontade.3
Esta é a ideia, não um diário porque sequer tenho esta disciplina ou pretensão, mas uma conversa comigo mesma e que você está convidada/o a entrar se quiser.
Antes de acabar, vou fazer uma coisa útil (não se pode ganhar todas). Mas isto porque sou uma grande inspirada. Só sei fazer o que já vi fazerem muito bem. Então vou terminar este primeiro texto para nada4 indicando as newsletter que consumo e me inspiraram. Elas vão aí sem critério de ordem, conforme eu for lembrando. São as que sempre encaminho pra alguém quando chegam:
Thais Farage: estilo pessoal, história da moda e como ela afeta nossas percepções atuais, discussões sobre roupa e trabalho.
Isadora Sinay: um apanhadão de sugestões de leitura/filme/música, mas não sem antes presentear a gente com um ensaio que suscita sempre conversas muito interessantes aqui em casa.
Thais Gimenez: comida, food service, restauração.
Moda afetiva: discussões sobre o consumo, padrões da indústria da moda e indicações assertivas e acertadas.
Lena Mattar: comida, Barcelona, dicas, fotos maravilhosas, um abraço no prato.
Em inglês:
Marco Almada: prata da casa, fala sobre tecnologia, direito, insights interessantes sobre o processo de pesquisa. Mas o melhor são as fotos de lontras.
Emiko Davies: ela é uma cozinheira e escritora australiana/japonesa morando na Toscana. Fala sobre cultura, comida e faz reflexões maravilhosas sobre a relação entre os dois (este texto sobre o mito do açúcar é uma preciosidade).
Italy Segreta: é muito bem-humorada e traz achados curiosos sobre a vida na Itália.
É isto, já ficam minhas sinceras desculpas por tomar seu tempo. Espero que a esta altura tenha ficado claro que é, mesmo, sem talento e por capricho.
o preço, neste caso, teria que contemplar também minha completa falta de motivação e vontade de dar uma aula em que a pessoa está prestando atenção em tudo, menos na aula em si. E conversar não é dar aula, em um outro momento falaremos sobre isso.
ninguém liga, eu sei, mas minha cabeça é quebrada e já vejo muita gente - eu nem conheço muita gente - dizendo na mesa do bar "cara, a Renata, que pouco talentosa ela" enquanto a outra responde "eu já sabia.".
espero mesmo que minha terapeuta me dê algum tipo de recompensa motivacional por todo este meu esforço
Beckett, Samuel. Textos para nada. São Paulo: Cosac & Naify. 2015.