eu fui pra puta que pariu.
"And in winter, under my greatcoat, I wrapped myself in swathes of newspaper, and did not shed them until the earth awoke, for good, in April."- Samuel Beckett
Quando meu marido me disse que iria a um congresso na Finlândia, me assanhei em convencê-lo de que eu deveria ir junto. Não foi a tarefa mais fácil porque o ponto levantado por ele era difícil de refutar: eu absolutamente odeio frio. Assim, sem concessões, odeio. É óbvio que odeio também o calor extremo e, em agosto, quando me vejo cozinhando em 43 graus na sombra, também odeio o verão e os dias quentes. Eu sou ranzinza, mas não sempre idiota.
Minha relação com o frio já foi outra. Quando jovem, achava uma delícia dias gelados, morei em Curitiba, adorava a imagem dos chalés em Monte Verde onde passei muitos fins de semana enfrente à lareira quando pequena e, depois, com meu primeiro namoradinho. Era fofo e inocente, até que em uma destas viagens geladas, sem me dar conta, fechei todas as frestas do quarto e acendi a lareira. Acordei de madrugada meio sem ar e pressenti que a lua de mel com as baixas temperaturas estava acabando.
Ainda resisti um bocado de tempo sucumbindo aos pequenos prazeres que dias frescos nos dão, até que em 2010 fui morar na Argentina e, no meio de junho, me vi, de repente, chorando de frio em Montevidéu, sem conseguir achar um casaco que coubesse no meu corpo. Na época, eu estava em um dos meus períodos mais magros, às custas de uma bomba de anfepramona que um médico criminoso receitava e me fazia passar 16h sem comer e fazer exercícios enlouquecidamente. Engordei um pouco na chegada à Argentina, mas como fui abastecida de medicação suficiente para 10 meses (a quantidade de anfetamina na minha mala certamente cumpria os requisitos de uma detenção por tráfico de drogas), continuava descontrolada. Isto para dizer que, no inverno de 2010, quando visitei o Uruguai, vestia tamanho 48-50. O que, para minha estatura, é um tamanho de falsa magra (as mulheres infelizmente saberão).
A temperatura estava próxima de 3°, muito menos do que eu já tinha sentido. E eu, despreparada.1 Mas eu era uma jovem mimada e sabia que uma ligação para meus pais pedindo dinheiro era só o que me impedia de ter um casaco adequado. Até que não foi mais. O dinheiro que eu tinha não era capaz de encontrar um casaco para mim. Nenhum dinheiro ao qual eu poderia aceder seria capaz de comprar um casaco que fechasse ou cobrisse toda a extensão dos meus braços. É óbvio que fui eu quem não soube encontrar, mas procurei. Procurei com todas as ferramentas que dispunha, sem celular, pagando locutorios para acessar internet e perguntando, com um espanhol que eu não tinha, onde poderia encontrar um tamanho maior.2 Tenho certeza de que havia casacos que me coubessem, meu ponto não é uma denúncia ao padrão de medidas de roupas no Uruguai. Estou dizendo que eu não achei onde comprar uma roupa que me coubesse e me esquentasse mesmo dispondo do aval dos meus pais dispostos a gastar uma quantia razoável de dinheiro nisso.
Anos depois, minha mãe dizia que eu levava a chegada do inverno como quem está se preparando para a escassez da guerra, me certificando de que tinha roupas o suficiente e providenciando novas, algumas iguais às antigas, apenas para garantir que não, eu não vou passar frio. Com o passar do tempo, tenho observado que já não me preocupo tanto, mas isto porque a) entendo que tenho roupa suficiente para me aquecer, b) sei onde encontrar roupas do meu tamanho caso me falte (14 anos fizeram muita diferença no mercado de roupas maiores e no meu espanhol, aproveito para dizer), c) tenho recursos para comprar roupa. E mesmo assim, garanto ter sempre ao menos 2 pacotes fechados de meia-calça fio 200 no armário no começo de outubro. É um pouco como aquelas pessoas que, ao entrar em um estabelecimento, mapeiam todas as possíveis rotas de fuga. Quando viajo para um lugar, sempre já sei de antemão onde posso comprar uma roupa do meu tamanho caso a mala não chegue, eu caia e rasgue a roupa, cague na calça, tenha uma hemorragia, enrosque na escada rolante (já aconteceu).
O que não fazia sentido entrava na cabeça do meu marido era o porquê de me expor, voluntariamente, não ao risco, mas à certeza de um frio quase polar. Curiosamente, o medo do frio só me acometeu dias antes da viagem, quando saí um pouco desesperada atrás de roupas térmicas.3 Não me passou pela cabeça o frio porque o que me atraía era a chance de saber como seria viver o oposto do que eu gosto de viver. E me fascina a oportunidade de ver como vivem as pessoas. Longe daquela baboseira de viver o lugar ou agir como os locais, o que acho legal é ver como as pessoas fazem as coisas e como estas formas de fazer as coisas moldam a maneira como aquela sociedade se comporta.
Por exemplo, em um lugar em que faz tanto frio, é curiosa a quantidade de lojas de jogos de tabuleiro pela cidade. Mas é óbvio, se eles não podem sentar na calçada pra tomar uma cerveja, precisam encontrar formas de se encontrar. E uma das mais tradicionais é fazer sauna. As pessoas se encontram em salas quentes para conversar, tomar algo e entrar numa água muito gelada com o corpo quente.
O que me motivou a experimentar foi tédio tanto a curiosidade para saber como isto se dá quanto uma descrença na sua realidade. "Deve ser marketing pra enganar turista idiota tipo o Antico Vinaio". Mas paguei o preço (24 euros), não sem antes me debater com o dilema: depilo ou não as pernas?
Explico: depilação é um dos legados da opressão estética do qual mais tenho dificuldade em me livrar. Embora agora aceite que de outubro a abril não vejo minhas pernas e tenha aberto mão da depilação nestes meses de inverno, a verdade é que estamos no fim de janeiro e a última vez que me depilei foi em setembro. NÃO DÁ PRA DISFARÇAR. No Brasil, eu jamais vestiria uma saia curta neste estado. Muito menos ficaria semi-nua na frente de estranhos na praia com as pernas assim. Mas algo me dizia que, se era verdade que aquilo era uma coisa normal, mais pessoas deviam compartilhar da opinião de que se depilar no inverno é uma burrice. Então não depilei.
Por sorte, todo o perrengue da chegada desbravando montes altos de neve e cuidando para não me estabanar no chão me poupou de pensar muito quando cheguei no lugar. Fui apenas fazendo o que era para ser feito, seguindo o fluxo das instruções, meio com medo de entender algo errado, abrir uma porta e estar pelada no meio do restaurante. Tira a roupa (o vestiário não tem divisórias, só armários), bota maiô, guarda a roupa molhada da neve, cuidado pra não molhar a meia senão vai congelar, pega chinelo (não precisava), banho rápido, entra na sala cheia de gente, PUTA QUE PARIU QUE CALOR.
Quando você entra, numa sala que é um pouco como uma pequena arquibancada, com assentos em degraus de madeira, é recebida por ao menos um Hi, tanto de turistas quanto de um número maior de locais. E as pessoas realmente conversam. Com o grupo com quem foram ou entre si, de repente alguém faz um comentário bem humorado e se começa uma conversa.
Muitas das conversas, é verdade, giram em torno de quem vai ou não ter coragem de entrar na água. Da sala anterior a esta, uma porta de vidro mostra a realidade de fora: gelo, -15°, o mar Báltico congelado e um caminho que se espera que você percorra, descalça e correndo, até uma escadinha em um buraco feito artificialmente pela casa para que você entre na água. Assim:
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Eu já sabia que me depararia com isto, não foi novidade. Mas na hora você realmente quer rever suas decisões.
Tão amigáveis são as pessoas que, com frequência, alguém que já foi acompanha quem quer ir e precisa de um apoio. Eu, por exemplo, estava com medo de escorregar e cair. Qual não foi minha surpresa quando uma moça se ofereceu para me acompanhar e disse que o caminho é marcado por uma espécie de tapete que impede que caiamos.4
A pessoa que acompanha tem uma única função: encorajar. Ela não vai entrar, até porque ali não cabiam dois. Ela está se dispondo a sair semi nua no frio apenas para que você faça uma coisa que está com vontade de fazer mas precisa de um empurrãozinho. Eu mesma quase desisti quando cheguei na escadinha porque, ao contrário do caminho com tapete, os degraus estão envoltos em uma grossa camada de gelo muito liso. Mas verdade seja dita, depois que você está com a bunda literalmente virada para o mar congelado, não vai ser o gelo no pé que vai te fazer desistir. Então, sob os gritinhos incentivadores da moça, cujo nome não faço a menor ideia, entrei, mergulhei, sai.
As pessoas fazem isto mais de uma vez. Eu fiz apenas uma, era suficiente. Mas não foi a única vez que fui lá fora porque, alguns minutos depois de voltar, uma outra moça ao meu lado queria ir, mas estava com medo. Foi minha vez de fazer a encorajadora.
Diante de tudo isso, esqueci de prestar atenção se alguém tinha notado que minhas pernas não estavam depiladas. Não por falta de oportunidade, as pessoas passam a maior parte do tempo apenas sentadas contemplando a neve lá fora ou conversando. Só não me ocorreu reparar; e ouso dizer que nem a elas. E me senti deliciosamente invisível. Não no sentido de não ser vista, mas de não ser notada o tempo todo.
Eu sempre fui uma pessoa grande e estranha. Em algumas épocas mais, outras mais disfarçadas, mas sempre estranha. Depois de adulta comecei a entender que, por morar em São Paulo, podia me valer da imensidão de pessoas para tentar me camuflar um pouco e descansar de fazer da, minha imagem, um manifesto. A gente já sabe que nossa resistência ao estranho vai se afrouxando à medida que somos expostos a pessoas diferentes de nós, e em São Paulo, pela dimensão abundante de variedades, é mais fácil disfarçar nossa existência também. Já na Itália, se por um lado me deparo com uma oferta ainda maior de pessoas diferentes de mim, por outro vivo sob a mirada futriqueira do italiano, que observa tudo que você faz para mostrar como fazer melhor. Da roupa que você veste ao já conhecido hábito do sorveteiro de negar te servir dois sabores que ele julga não combinarem. A nonna está sempre pronta para comentar sua aparência ou dar um conselho não solicitado sobre como você deve viver sua vida.
Para uma pessoa como eu, que sempre chamou tanta atenção, passar despercebida é um conforto que poucas vezes me ocorre. Uma gentileza de permitir que as pessoas vivam a própria vida como querem. Óbvio que há exceções, coisas horríveis que todos os lugares impõem como limitação para a liberdade de ser quem é de suas pessoas. Mas vendo do meu lugar de turista, me fez entender uma das muitas possíveis explicações para que a Finlândia ocupe o topo da lista de lugares onde as pessoas são mais felizes. E eu gostei de passar alguns dias sob o que eu considero uma percepção mais moderna do mundo.
Não caí e não passei frio para além do previsto. Na verdade, fiquei contente por ter feito exatamente o que eu tinha me proposto: ver como é viver de uma forma tão diferente daquela que eu vivo e de onde venho. À diferença da Itália, não conseguiria me adaptar àquela realidade, mas entendo o que leva estas pessoas a amarem a própria vida. E, a seguir o exemplo delas, vou lembrar a mim mesma que a forma como as pessoas vivem a própria vida não me diz respeito. Porque eu só posso acreditar em um mundo em que as mulheres não vão comentar as minhas pernas peludas se eu não estiver comentando a delas. A gente vai melhorando.
Dito tudo isso, aproveito para deixar aqui algumas coisas legais que vi, comi e vivi, caso um dia te apareça a oportunidade de conhecer o fim do mundo.
Sauna: eu fui nesta, mas ouvi falar bem desta também. Ambas têm esta saída para o Báltico (algumas têm só uma piscina).
Comida: mesmo eu, pouco apreciadora de salmão, me surpreendi com o que encontrei. Outra coisa são as famosas carnes de caça, principalmente rena e urso. Comi em lugares um pouco aleatórios, mas recomendo o Old Market Hall, pela variedade de opções caso você, como eu, tenha pouco tempo.
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Café: dizem que a Finlândia tem o maior consumo per capta de café do mundo e foi o lugar onde, disparado, bebi os melhores em toda a Europa. E eu levo café muito a sério. Recomendo o Andante (o atendimento não é bom, mas o café é perfeito) e o St. George Bakery (muito simpático e a variedade de pãezinhos de canela/cardamomo é impressionante e deliciosa). Um pouco brega, mas encantador, é este lugar, um café onde você passa 2h em meio a 10 gatos e 2 coelhos. Já cansada de andar e passar frio, confesso que foi bem gostoso estar ali com os bichinhos descansando a panturrilha do esforço que fazia para não cair na rua.
Helsinki é uma cidade cara e os ingressos aos museus variam de 18 a 25 euros. Como tinha poucos dias, apesar da neve, me esforcei em conhecer a cidade andando. Dois blogs que me ajudaram a planejar estes dias foram este e este.
Por fim, mais umas fotos da puta que pariu. Porque ela é bonita, sim.
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como para tudo naquele ano
eu falava muito mal espanhol na época
as melhores são da Uniqlo, mas a grade feminina deles é ridícula. Comprei algumas peças na sessão masculina e foram suficientes para o frio, mas é um pouco desconfortável usar meia-calça térmica masculina com aquela entrada/saída/porta/acesso que tem na frente.
ele não impede que o pé congele
Eu amei o título e as reflexões. Ri e me identifiquei: só com muito encorajamento messssss pra entrar no mar congelado 😱
Eu, que temo a cachoeira e o mar do litoral paulista inclusive nos dias de verão. Brrrrrr, água fria dói.
Li tomando o café que gostaria de estar partilhando