panettone e a hipoteca do futuro
“The Christmas bells are ringing across the void. How can it be the void? And yet it is.” - Samuel Beckett
Quando decidi escrever esta newsletter, alguém (ou minha cabeça) me questionou sobre a periodicidade destes textos. Eu não soube me responder, mas meu aniversário há 2 semanas talvez tenha trazido alguma clareza.
Eu sou obcecada por aniversário. Sou obcecada por um bom bocado de coisas e aniversário é apenas mais uma delas. Sou obcecada por comida, já fui por pessoas, venho sendo obcecada por mim mesma e minhas dores há um bom tempo. Muitas pessoas dizem ser movidas a paixões, eu coleciono pequenas obsessões, mais apegada a algumas que outras, vou variando conforme a oportunidade me aparece.
Aniversário me faz olhar para o fato de que apesar de não acreditar na escolha da chegada, a permanência é uma decisão ativa. Porque foram tantas as vezes em que não estive, por dor ou acaso, que olhando em retrospecto, reconheço o esforço que venho empregando em sobreviver. Então, de alguma forma, anseio a chegada do dia de renovar o voto com um ano mais na esperança que, de fato, eu esteja passando um cheque que posso cobrir. E por causa disso, passo o tempo ocupada em me convencer de que esta promessa vale a pena, mesmo aceitando o absurdo da vida e que um dia eu acordei sem mãe.
Então olho pros votos e não sou capaz de me comprometer com eles por um ano. Mas me lembro de que no mesmo dia do ano passado eu só prometi estar aqui mais um dia e foi assim que cheguei a mais um aniversário, a mais qualquer passo na minha vida. Amanhã bem cedo eu desisto. No próximo segundo, e de repente um ano a mais. Não é para sempre. Às vezes, tudo que não é hoje ou agora, só por 10 segundos, é uma hipoteca para sempre.
E não fui, nem sou, capaz de me comprometer com mais um ano e sua hipoteca. Por outro lado, quando a professora de educação física me perguntou sobre meus objetivos com as aulas, respondi prontamente que venho me submetendo àquela tortura para assegurar que farei cocô sentada quando for velha. Penso muito sobre a velhice por medo e fascínio.
Mas seria exigir demais me comprometer com qualquer periodicidade de fazer algo que, já convencionamos, é completamente sem talento e unicamente por capricho. Então é como vai ser.
Falando em obsessões, a minha preferida nesta época do ano é panettone.
Este é o quarto Natal que passo na Itália, cada um dos que vieram deixou uma marca forte. O primeiro foi em 2020 e o clima da cidade era de mau humor.1 Eles estavam putos que, depois de tantas mortes e um lockdown duro, vinha aí mais um período de escassez de encontros e nada de festas de fim de ano. A Toscana estava na fase laranja, o que significava, basicamente, que era proibido sair de casa, a não ser por necessidade. E, mesmo assim, só uma pessoa da família.2
Eu às vezes escapava para caminhar e, em um destes dias, comprei o primeiro panettone que comi daqui. Era de pera e chocolate, escolhi pela combinação curiosa3 e, apesar de não ter me decepcionado, não revirou meus olhos. Na verdade, eu não tinha muita esperança de que qualquer panettone revirasse meus olhos porque eles me eram completamente indiferentes.
Até que, uns dias antes do Natal, meu professor de italiano me disse que eu deveria provar os do Giovanni Cova, que era uma marca comercial, mas talvez me agradasse. Por filhadaputice sorte, poucos dias depois ganhamos um de chocolate do nosso locador. Eu nunca esqueci daquele gosto.
Uma vez, uma das mil terapeutas que tive me disse que o adicto procura sempre a primeira vez que teve contato com o objeto de sua adicção. Eu entendo o que ela falou sob mais vieses do que gostaria de admitir, mas panettone não seria diferente. E eu levo a sério minhas obsessões, como esta newsletter inevitavelmente vai mostrar.
Giovanni Cova está longe de ser o melhor, mas foi o primeiro. E eu aprendi de pequena a me acostumar fácil a coisas boas e ser curiosa em relação a elas. De lá pra cá, meu paladar foi mudando e não vejo mais graça no de chocolate4, mas levei a sério a empreitada de aceitar a alegria que uma boa fatia poderia me trazer.5
Como tudo na Itália, o panettone tem uma história gloriosa. Dizem que sua produção data do final do século XV, segundo a Biblioteca Ambrosiana de Milão, que guarda um manuscrito de 1470. Nele, supostamente pela primeira vez, se mencionou o tal pão doce com passas.6 De início, o panettone tinha aquele formato achatado, até que, em 1920, a família Motta revolucionou o mercado do produto em duas frentes. Primeiro, adicionou um composto ao fermento, que viabilizou a produção em massa (da massa - tumdumtsss). Segundo, abriram uma fábrica que tinha um forno alto, o que permitiu a modelagem do pão naquele formato mais alto, como os do Brasil. Hoje, a Motta é uma marca bem popular, a Bauducco deles, embora a fábrica jure que o lievito madre permanece na sua lista de ingredientes.7
Isto porque, como nós já notamos, os italianos levam mais a sério a comida do que quem come, então a produção do panettone é regulamentada por lei. Um decreto que data de julho de 2005 estabelece que, para levar o nome de panettone, o pão precisa ser produzido sob alguns critérios. O estatuto determina padrões como a categoria do ovo usado (tipo A), um mínimo de 16% de manteiga (que deve ser produto apenas de leite de vaca) e 20% de frutas cristalizadas, e a natureza do fermento (natural e de massa ácida). Outros ingredientes, como uma lista pequena de conservantes, mel e leite são permitidos, mas entram em uma categoria separada que também determina o percentual que pode ser utilizado.
O carnaval de sabores, entretanto, data do fim do século XX, com a Nestle dominando as ações das maiores produtoras como a própria Motta e a Alemagna, o que levou a algumas importantes consequências. A primeira foi a popularização do próprio produto, graças ao barateamento da fabricação. A partir daí, a porteira abriu novos sabores, como o chocolate, foram introduzidos.8 Tudo isso culminou em uma nova categorização do pão em industrial, semi-artesanal e artesanal.
Industriais são, meio obviamente, aqueles que são vendidos no mercado ou grandes lojas. Eles costumam variar entre 5 a 15 euros. Aqui onde eu moro, por exemplo, a maior rede de mercados tem sua própria padaria e foi escolhido como melhor panettone industrial em 2023 pela Repubblica.





Já os semi-artesanais são feitos diretamente por pasticcerias com ingredientes de alta qualidade. A diferença entre eles e os completamente artesanais está no maquinário e na adição de conservantes. Enquanto a produção dos primeiros consegue atender à demanda de lojas maiores, como o Eataly, por serem feitos com tecnologia que permite o processamento de maiores quantidades de massa, o panettone artesanal é feito na própria pasticceria local. Encontra-se, com facilidade, panettones semi-artesanais dos mais diversos sabores e eles costumam vir encartados ou em latas. Já os artesanais não costumam variar para além de tradicional e de chocolate e são empacotados da maneira mais simples possível.
Os meus favoritos são:
1 - S.forno - uma vez comprei uma colomba neste lugar e a moça me proibiu de abrir antes do fim da semana porque o pão ainda estava muito novo e precisaria apurar um pouco. Ela deu uma recomendação parecida em relação ao panettone deste ano e, após extensa pesquisa (ir provando todo dia pra ver se o sabor mudava), devo admitir sua razão. Este tinha 750g e custou 24 euros.


2 - Arà - siciliano, então tem pistache e aquele formato mais achatado. É feito ali mesmo; enquanto eu pedi, o padeiro assava outros novos. Se não me engano, o de 1kg custava 37 euros, mas posso estar errada porque pedi só um pedaço. Como a Sicilia é famosa pela qualidade da laranja, as frutas eram as mais gostosas (inclusive comprei um saquinho só de laranja pra comer depois, com café).


3 - Igino Massari - faz jus à fama, mas não acho que valha. Assim, é bom, talvez a massa mais saborosa dos três, mais amarelinha e amanteigada, mas tenho um pouco de birra com o lugar porque o atendimento é horrendo (o do S.forno não fica atrás, mas é menor e mais fácil de lidar) e não gosto dos outros doces. 43 euros o de 1kg, mas comi na loja, então vinha um zabaione que, seguramente, foi o melhor que já comi na vida.
Duas curiosidades engraçadas sobre o panettone aqui é que, assim como no Brasil, os sabores foram se modificando com o passar do tempo. Em 4 natais, já me deparei com sabores tradicionais incrementados, como pistache, creme de avelãs, chocolates diversos, marron glacè. Mas não para por aí, em uma passagem rápida pelo mercado, encontramos tiramisù, limoncello, grappa, creme de laranja, ricotta, mascarpone, stracciatella, Baileys, creme de café. Para citar alguns.
Além disso, uma mesa natalina tradicionalmente italiana também serve o chamado panettone gastronomico, uma versão salgada que mais parece um sanduíche pirâmide. Pode vir recheado com frios e queijo, ou peixe (oi, salmão com cream cheese). Não faço ideia do preço deste da foto, que é do Igino Massari, mas imagino que se aproxime dos 80 euros. Em pasticcerias mais simples, é comum que se cobre aproximadamente 60 euros.
Pelo que tenho visto, a obsessão pelo panettone perfeito não é só minha e as padarias no Brasil vêm fazendo produtos muito bons. Não me fio em indicar nenhum porque este foi um gosto adquirido depois dos meus 80 anos de mais velha, então não tenho lembranças suficientes. Mas uma boa saída pode ser ver na lista de ingredientes se o percentual de manteiga é alto, a qualidade dos ovos e ausência de essências artificiais, por exemplo.
Bem, é isso. Falei tanto para dizer que, no fim, panettone bom mesmo é o que a gente gosta. Obrigada pela companhia e se quiser me mandar sugestões de bons panettones onde você está, vou adorar saber!
só mais um dia na Itália
o governo abriu uma exceção para o almoço do dia 25, quando até 8 pessoas poderiam se encontrar em casa. Naquele dia, fomos almoçar na casa de uns amigos, era longe e tivemos que voltar a pé, apesar de eles terem carro, porque era proibido que mais que duas pessoas de famílias diferentes estivessem no mesmo automóvel.
tudo que eu sabia sobre a Itália antes de imigrar foi construído com base em A vida é Bella e Comer, rezar, amar, então não me comprometo com nenhuma expectativa fora do estereótipo. Pera e chocolate hoje figuram entre os sabores ditos tradicionais de panettone, não tem nada de inusitado nisso.
tenho uma certa obsessão por laranjas cristalizadas, um dia conversamos sobre elas.
tenho dificuldade em aceitar de bom grado algumas alegrias, mesmo aquelas pelas quais posso pagar.
como tudo na Itália, você facilmente vai encontrar por aí outra história, datando de outra época e outros personagens.
eu acredito.
no Brasil, o Chocotone foi lançado em 1978.