blue monday e para quando eu fizer 40
"Never but the one matter. The dead and gone. The dying and going. From the word go."- Samuel Beckett
Eu não achava que estava trapaceando quando dizia que tinha cabelos lisos 8 anos atrás. Eles eram lisos. Como tinham ficado lisos, se eram naturalmente lisos ou se eu me esforçava para que ficassem lisos, não importava, e eu me descrevia como uma pessoa cujos cabelos eram lisos. Mas desde que parei de forçar esta lisura e mantenho1 meus cabelos cacheados, tenho a sensação de que estou roubando. Eles já cresceram toda a extensão necessária para serem considerados virgens e livres da química alisadora à qual foram submetidos por tantos anos, mas sinto como se de repente tivesse assumido (ahá) uma característica em minha personalidade que não era minha e passou a ser apenas em função do meu cabelo.
Dito isto, e as pessoas de cabelos cacheados que me lerem assentirão com a cabeça, há pouco ou nada que se possa fazer por2 um cabelo cacheado saudável. Ele vai se comportar como lhe convier e sua (minha) tarefa está mais próxima da resignação do que de tentar ter algum controle com o que virá depois de uma lavagem, uma noite de sono ou 10 minutinhos de cafuné do marido. Por outro lado, verdade seja dita, há artefatos que ajudam. Eles demandam tempo, dinheiro, energia e, de novo, não são garantia do resultado desejado. Mas de tempos em tempos, quando a gente acha que deveria/gostaria de investir um pouco mais destes tempo, dinheiro e energia em busca de um maior percentual de possibilidade de sucesso, mesmo diante de um futuro incerto, cedemos ao ritual creme-shampoo-máscara-outrocreme-gosminha-escovapolvo-fitagem-secadorcomdifusor-óleo.
Há algumas semanas eu e meu cabelo não estamos em nosso melhor momento. De início, pensei em ceder a uma escova (!!) apenas para descansar de desgostar do caos cacheado e ceder ao conforto dele liso, calmo, previsivelmente lindo. Mas vamos viajar esta semana para um lugar úmido e a imagem do liso visivelmente se metamorfoseando em cacheado, daquela forma que só as que viveram anos de escova progressiva sabem o que é, me apavorou. Há 3 dias andando com ele preso, chegou a hora de lavar e decidi tentar um novo protocolo para o ritual descrito acima, alterando alguns produtos, a ordem, procedência, vamos lá. Um período razoável de tempo, algum dinheiro gasto e bastante energia despendida depois, ficou bom. Bastante bom, eu diria. Esteticamente bem agradável.
E enquanto apreciava o resultado, procurando ângulos diferentes para ver com dois espelhos no banheiro, lembrei que amanhã tenho educação física e imediatamente fui atingida pelo óbvio pensamento de que “nem fodendo vou desperdiçar um cabelo bom depois de semanas de cabelo de merda. Vou cancelar a aula”. Mas é mentira. Porque eu nunca cancelo a educação física.
Acontece que eu vou fazer 40 anos este ano e tenho preferido me assegurar que o que de mim chegar ali será fruto de alguma consideração, mesmo que este cenário ainda me soe tão improvável quanto a hipoteca do futuro. Nada pessoal, quem dera fosse por uma razão bem preconceituosa e etarista do tipo “deusmelivre envelhecer", mas não. Eu só sabia que se chegasse aos 40, seria sem querer, por um infeliz acaso ou por um esforço obrigatório/moral. Afinal, a opção de não estar aqui desde sempre me pareceu melhor e mais sedutora do que a presença, mas eu a) era covarde demais para tomar uma atitude sobre isto;3 b) estava distraída com relacionamentos horríveis, comida, sexo, obsessões variadas; ou c) tinha fé, e eram estes os dias em que sentia mais pena de mim mesma, os dias em que me mantive viva, aqui, só mais um minuto, por fé de que chegaria o tempo em que o estar fosse melhor do que o conforto da contemplação da partida.
É mais ou menos assim a cabeça de uma pessoa deprimida, você oscila as histórias que conta para si mesma na esperança de que algum dia o acaso, ou deus, ou seja lá quem gerencia esta planilha, te tire daqui num pequeno gesto de compaixão, misericórdia ou uma decisão protocolar, nunca saberemos.
Ainda lembro da primeira vez que fui medicada. Tinha quase 20 anos e acabara de viver um aborto de uma gravidez completamente equivocada. Quando começamos a medicação, eu poderia jurar que não estava exatamente deprimida. Tinham sido tantos anos sob aquela sensação que, honestamente, eu não sabia que existia outra forma de viver que não suspensa na névoa, sempre um pouco embriagada de uma dor que não cedia mesmo diante de tanto esforço, e que, de fato, não cedeu (e nem cederia) com o remédio.
São quase 20 anos medicada e confesso que em nenhum momento sequer nutri a esperança de viver de outra forma. Especialmente depois de vir morar na Europa, onde a medicação é barata e não preciso me preocupar se serei capaz de pagar por ela mensalmente. Assim como fazer 40 anos, não era algo que me passava pela cabeça e achava que os efeitos colaterais do antidepressivo eram um preço secundário a ser pago por uma existência tolerável.
Não sei dizer quando as coisas mudaram (sei sim), se elas mudaram (mudaram), se fui eu (também). Mas vou fazer 40 anos e há uns 7 meses venho em um processo de desmame da medicação que me trouxe à menor dose possível, uma dose que meu psiquiatra disse não ser mais terapêutica, uma dose que é só meu paninho apegado antes de dormir, uma dose que estou pronta para dizer a ele, quando a mensagem de férias sair do seu whatsapp, que podemos abandonar. Não sem medo de largar a boia, mas com algum desejo, pela primeira vez, de apostar mais na vida do que no fim.
Não gosto de pensar no que teria sido de mim nos últimos 20 anos sem o remédio, mas começo a contemplar, pela primeira vez, um futuro. Com ou sem ele, não faz tanta diferença. Por via das dúvidas, como quem para de fumar mas guarda um maço escondido numa gaveta para uma emergência, vou manter uma caixa comigo, monitorar para que esteja sempre na validade, cultuar com carinho estas tentativas de me assegurar que, sem a química atuando no meu corpo, não vou estar desamparada. Apesar de lembrar que já estive desamparada com ela e que o remédio não é uma promessa, old habits die hard e eu bem sei que nada disso quer dizer uma cura. O tempo, aquele do conforto da presença não chegou e eu entendi que a dor não vai ceder, eu talvez apenas tenha me tornado mais disposta a parar de esbravejar que o mundo precisa decidir entre ela ou eu (ela ganharia).
Quem eu vou encontrar do lado de lá ainda é, talvez, um personagem desconhecido de/para mim mesma. Mas vou fazer 40 anos e nem era para eu estar aqui. Pelo acaso ou por vontade, eu nunca achei que chegaria. E decidi não cancelar a educação física amanhã por causa de um cabelo bonito porque eu não cancelo nunca a educação física, porque é ela quem vai me assegurar de que caso eu chegue aos 70, poderei cagar sentada. E, pela primeira vez, penso em chegar aos 70, quero ir até lá, estou mais curiosa do que desolada com a vida. No fim, talvez o desejo dos 70, a educação física e uma meticulosa decisão de parar (por enquanto) a medicação sejam um presente para quando eu fizer 40. Quem sabe até lá eu não me acostumo também com o cabelo.
tenho questões com o verbo “assumir” quando associado a características físicas ou partes do corpo.
por e não para
salvo duas infelizes ocasiões