doces de carnaval para quando a morte chegar
"The end of a life is always vivifying." - Samuel Beckett
Ninguém mandou morrer, foi o que eu disse quando me dei conta de que não paguei em vida os 200 reais que devia para minha mãe. Repito isto agora, sabendo que ela ficaria puta se descobrisse que em vez de escrever sobre tudo que me ensinou a respeito de alegria, amor e comida, estou fazendo uma newsletter sobre sua morte.
Isto porque, a exemplo de como ela fez com a própria orfandade, decidi que precisava esquecer a data do calendário, não fazer disto um momento importante e ignorá-la, ficando apenas com a beleza do dia de seu aniversário, pouco menos de duas semanas antes. Minha mãe tinha este dom, o da alegria. Uma alegria tão contagiante quanto irritante, meio Pollyanna, beirando a mania e a negação, não estou em posição de julgar. Mas eu não puxei isto dela e venho tentando forjar em ferro bastante duro uma postura mais maleável com a vida, oscilando entre me inspirar e praguejar aquilo que não tive tempo de aprender com ela.
E foi em seu aniversário deste ano, quando completaria 70 anos, depois de procrastinar com desculpas diversas por algumas semanas, que finalmente mandei a tal mensagem ao meu psiquiatra comunicando que estava disposta a parar a medicação ao fim da cartela atual (cheia, obviamente). Não era para ser um presente para ela, mas calhou de minha coragem coincidir com a tristeza da ausência enquanto preparava a água para cozinhar o polvo que fazia em sua homenagem. Iluminada pelo desejo agridoce de viver apesar daquela falta, comuniquei a ele que talvez esteja pronta, veja, mas pode ser que não, o que você acha, será que consigo, ao que ele respondeu com um já esperado ah, Rê, eu aposto sim, vamos lá, qualquer coisa é só voltar. E assim foi.
Me sinto ao mesmo tempo ingênua e traÃda por não ter previsto que imediatamente depois da mensagem, dois dias sem medicação, eu voltaria a sentir um conhecido incômodo, aquela sensação de inadequação, o desgosto. Há dias em que, costumo dizer, tudo que vejo, sinto e penso tem gosto de bela bosta. Não ruim, belo muitas vezes. Mas uma bosta. Bela bosta. Bosta enfeitada, perfume em cima do cheiro azedo de suor, ovo frito na margarina. O velho acompanhante de toda uma vida, que nos últimos meses vinha mais silencioso, aparecendo em ocasiões sorrateiras nas quais eu já estava começando a confiar que a recuperação, inclusive, se tornava mais rápida e, em raras ocasiões, quase indolor. A concretude de que um dia ruim dura até que eu durma e o próximo não é uma aposta vazia.
Mas ali estava ele de novo, por dias seguidos. E, como de praxe, tentei suprimi-lo com qualquer obsessão que estivesse ao meu alcance, sem sucesso.1 Até que um saquinho de cenci veio ao resgate de minha mÃngua.
Já falamos aqui sobre como os italianos se ocupam de sua própria comida com um fervor que beira o doentio, então não é de se estranhar que o carnaval não passaria ileso e toda uma variedade de doces tÃpicos surge nas vitrines das pasticcerias tão logo desaparecem os quitutes natalinos. Respeitando também a tradição que reforça as diferenças culturais disfarçadas de ódio entre Norte e Sul, os nomes e preparos variam de acordo com a região.2
Cenci é um deles, também conhecido como chiacchiere, bugie, frappe, galani o crostoli, a depender da origem de quem os faz e de onde você vai comê-los. Consiste em uma massinha de farinha, açúcar, manteiga, ovo e uma bebida, Marsala, vinsanto ou grappa, novamente variando de acordo com de onde vem a nonna que vai fritá-lo em óleo. Antes da fritura, a massa é cortada em tiras, muito parecido com a cueca virada curitibana. Alguns polvilham açúcar impalpável,3 outros servem com um fio de mel, e resulta em um petisco tão viciante quanto ordinário.
Outra iguaria carnavalesca é o fritelli di riso. Já desapegada do receio de ter minha carteira de identidade italiana cancelada, afirmo tratar-se de bolinhas fritas de um arroz doce saborizado com rum e suco de limão. É o meu favorito, uma espécie de bolinho de chuva com interior cremoso.
Por ser originária do Abruzzo, não é comum encontrar a cicerchiata na Toscana, mas este ano cruzei com ela ao acaso dia destes. Também uma massinha, desta vez feita de farinha, açúcar, ovo e óleo, é cortada em bolinhas bem pequenas e, para surpresa de ninguém, frita. Às bolinhas são adicionados confeitos e amêndoas laminadas, e tudo isto é banhado em mel quente e moldado em formato de uma coroa. Não sei descrever em que gosto isto resulta porque, apesar de tê-la provado, me falta, talvez, vocabulário para descrever o quão insosso isto é, mas deixo uma imagem para ilustrar sua imaginação.
A esta altura, é evidente a predominância da fritura nos doces italianos tÃpicos de carnaval. De minha parte, atribuo este feito a uma tentativa de prevenir/combater a ressaca, mas aparentemente a explicação oficial é outra. Todas estas receitas datam de tempos longÃnquos, quando não havia geladeira para conservar alimentos a frio. Então foram criadas receitas fritas para utilizar o lardo (banha de porco) antes da chegada da primavera, quando a temperatura esquenta e o ingrediente se perderia.
Especificamente em Florença, onde eu moro, a guloseima tradicional da época é a schiacciata alla fiorentina, um bolo feito de farinha de manitoba com um leve toque de raspas de laranja e especiarias. Chama atenção sua apresentação opulenta, às vezes servida recheada com chantily. Honestamente, seria um bolinho delicioso para comer com café, não fosse a grossa camada de açúcar impalpável usada para dar contorno ao desenho em cima, o que demanda um esforço desproporcional para evitar que todo aquele pó branco suje a roupa de quem come (geralmente escura, já que fevereiro ainda é tempo de frio).
Minha opinião sobre os doces italianos de carnaval é que nenhum deles merece muito nossa atenção, mas é justamente aquilo a que não damos atenção que, numa esquina aleatória, pode nos salvar de nós mesmos e nossa miséria. E foi comendo um saquinho de cenci que entendi que meu reencontro com a sombra era mais um problema de memória do que de falta de medicação.
Foi entre uma mordida e outra, fazendo barulho de crocante no ouvido, que me lembrei que eu não sou o tipo de pessoa que pode se dar ao luxo de descuidar da própria alegria, de deixar na conta do acaso as ocasiões em que me sento no parque para comer doce frito e lembrar o porquê de, apesar de andar para sempre com um buraco no peito, o saldo da vida é positivo mesmo que eu precise fazer vista grossa e arredondar generosamente a conta para cima. E que, para além da educação fÃsica, comer direito, dormir bem e toda sorte de compromissos que assumo comigo mesma diariamente na tentativa de assegurar alguma estabilidade emocional, à diferença de minha mãe, a alegria não vai me alcançar caso eu não a persiga intencionalmente.
A ausência da medicação, longe de me causar efeitos fÃsicos, ocupou minha memória com a lembrança de águas profundas onde já estive e fui resgatada por ela 20 anos atrás. E fiquei lá, olhando para isto, nadando no raso por medo de me afogar por estar sem boia, esquecendo que que aprendi a nadar antes de deixá-la, mas que para nadar é preciso se mexer. E que embora seja mais fácil e rápido se deslocar sem boia, a verdade é que sem ela o risco de submergir assume uma dimensão assustadora. Para uma pessoa que pautou a própria existência na condição de apenas evitar o afogamento, sequer me ocorreu bater os pés em vez de ficar parada dizendo a mim mesma para tomar cuidado porque quem nada corre o risco de se afogar. É como aqueles experimentos em que alguém abre a porta para o bicho e ele continua na jaula. Se a jaula é minha tristeza, talvez eu precise de um pouco mais do que só a abertura da porta para sair. É preciso que fora dali a alegria me espere, mesmo que ela venha em forma de um saquinho de cenci no parque.
Para além de tudo isto, entendi que me forçar a esquecer o dia em que minha mãe morreu era impor à minha memória sua lembrança constante. Como se fosse possÃvel esquecer, como se esta lembrança fosse desaparecer apenas porque eu queria me convencer a fingir e disfarçar que ela não está lá. Eu, que sei a data de tudo, que todo dia 08 de dezembro lembro de quando menstruei pela primeira vez, que com pouco esforço acesso um arquivo de recordações bem mais inúteis que o dia mais triste da minha vida. Não importa muito meu desejo de que o dia 08 de fevereiro não fosse um dia essencialmente triste se ele se tornou um dia essencialmente triste naquela manhã de 2022 quando eu acordei sem mãe. Passar os dias que antecedem esta data me lembrando de esquecê-la só faz com que ela cresça, deixe de ser um marco triste e passe também a ser mais uma fonte de frustração pela minha incapacidade de fazer algo que está além das minhas possibilidades. E isto não tem nada a ver com a ausência dos efeitos do escitalopram na minha cabeça.
Por outro lado, lembrei que ano passado fiz uma pequena cirurgia que, por uns dias, me obrigou a confiar apenas nas forças das minhas coxas e poupar um abdomen recém cortado. Qual não foi a surpresa ao ver que as aulas de educação fÃsica que eu tanto sou viciada detesto fizeram diferença para como meus músculos se comportaram. E aqui estou, escrevendo este texto. Então talvez eu possa começar a confiar também mais em meus músculos do que na falta da boia quando precisar contar com eles. Capaz que seja sempre isso, a gente aprender do que não pode descuidar.
Estar sem boia não me obriga a nadar no raso, mas me lembra que preciso tomar as precauções necessárias para garantir que não vá submergir muito, mesmo que em algum momento, como nos últimos dias, eu beba um pouco de água. E se, por um lado, vou lembrar que faz 2 anos que minha mãe morreu, por outro isto evocou a lição mais valiosa que ela me ensinou, a não descuidar da alegria.
No fim, a newsletter sobre o dia de sua morte acabou sendo sobre o legado que carrego comigo, comida e carnaval. Não acho que ela se queixaria de ser lembrada assim.
como sempre
a fonte das imagens que usei neste texto estão referenciadas através do link que segue o nome do doce
a maior obsessão italiana depois do glúten